01/03/2022
TRADUZINDO-ME (01)
INTRODUÇÃO
Ninguém melhor que você mesmo para contar a sua história. Talvez lhe falte, como falta a mim, o traquejo para apresentar as palavras certas nos locais certos, enfim, para ser um escritor. Mas nós vamos tentar reparar essa falha com a nossa força de vontade e com a sinceridade de nossos corações.
Como não tenho maiores pretensões, vou partir de um lugar comum que me representa perfeitamente na minha criancice e juventude até aos 17 anos, sendo assim peço licença aos Engenheiros do Hawaii para adulterar um pouquinho a letra da sua música que muito bem representou um período histórico do nosso mundo de há uns 50 a 60 anos, dependendo do ângulo em que se olhar a contracultura que foi surgindo no pós-segunda guerra e depois do assassinato de John Fitzgerald Kennedy. Ouso, portanto, dizer que eu “Era Um Garoto Que Amava Os Beatles, Os Rolling Stones e os Pink Floyd”. Desta seleta coleção de bandas eu retiro imagens vivas da minha já citada meninice. Dos primeiros, retiro “Don’t let me down... nobody ever loved me like she does... oh she does... yeah she does...”. Digamos que florescia um sentimento em mim ao qual chamava amor, apesar de toda a rebeldia que caracterizava a tal da contracultura citada acima e que nada mais é, para quem não sabe, que a prática de atos de rebeldia contra o sistema que estava implantado naquela época, ou atos anti-establishment, nos EUA e na Inglaterra, principalmente. Basta lembrar Elvis Presley que preferiu a cadeia a ir combater no Vietnã. Ele não foi à guerra, mas eu fui. Veremos isso mais adiante.
Depois dos garotos rebeldes, começaram a surgir bandas que, de forma semelhante, marcaram a minha juventude. A exemplo disso cito os Rolling Stones e seu maior grito de rebeldia “I can’t get no”. Diz a letra: “Eu não consigo nenhuma satisfação ... porque eu tento, eu tento, eu tento ... eu não consigo nenhuma satisfação ...quando estou dirigindo meu carro ... e aquele homem surge no rádio ... me contando mais e mais ... sobre alguma informação infantil ... deveria conduzir minha imaginação ... não consigo nenhuma ... Ah não, não, não ... ei, ei ei ... é o que eu digo ... Eu não consigo nenhuma satisfação...”.
Por fim, na minha seleção, surgem os meus eleitos como a melhor banda de todos os tempos: Pink Floyd, que quase me arrasa com a música “I wish you were here” – “Então ... então você acha que consegue distinguir: céu de inferno; céus azuis de dor? Você consegue distinguir um campo verde, de um frio trilho de aço? Um sorriso de uma máscara? Você acha que consegue distinguir? Fizeram você trocar, seus heróis por fantasmas? Cinzas quentes por árvores? Ar quente por brisas? O conforto gelado por mudanças? Você deixou de ser coadjuvante na batalha para ser protagonista numa cela? Como eu queria, como eu queria que você estivesse aqui. Somos apenas duas almas perdidas nadando num aquário, ano após ano, passando pelos mesmos velhos lugares e o que encontramos? Os mesmos velhos medos. Queria que você estivesse aqui”.
Esta velha canção vive rodando eternamente, atualizada, dentro do meu peito gerando uma dor indolor, um sofrimento não sofrido e um arrependimento não arrependido. Talvez, não garanto, ao longo desta pequena história vocês entendam estas contradições. Preciso dizer que as traduções de partes de músicas ou da canção final, no seu total, são livres, sem algum compromisso de minha parte com o verdadeiro sentido das palavras que usei. É como eu as sinto.
Então eu era esse garoto, nascido em 49 e quando minha família teve acesso à energia elétrica e ao primeiro rádio já os Beatles cantavam “Let it be”. O famoso bichinho chamado Rock’n’roll já me havia mordido. Era um inocente, que não falava a língua deles, mas o timbre e a melodia me haviam cativado. Havia muita zoada que fazia com que os mais velhos odiassem tal “música”, mas depois dos Pink Floyd com a música que traduzi acima e outras como “Confortably numb”, “Another brick in the wal”, “Time”, “Money” – para falar só destas dentro do seu estilo psicodélico, a imagem do rock pesado foi sendo substituído e ganhando novas feições, foi sendo melhor aceito na sociedade conservadora em que foi instalado.
Mas preciso retomar o meu tema que apenas é perpassado pela música de vários crâneos, permanecendo eu esta incógnita, até para mim mesmo. O que me proponho é algo distrófico em relação a uma construção que foi sendo realizada em paralelo: a minha própria realidade e visão de vida.
1 – Eu.
Desde criança sempre apresentei um comportamento narcisista e introspectivo. Hoje, de cá de tão longe daqueles momentos, chego a acreditar numa dupla personalidade ou, sofrer de um possível transtorno de bipolaridade, traduzido, pelo menos, em alternâncias comportamentais, talvez provocadas pelo meu estado de espírito mais pessimista, exacerbado pelas diferenças sociais que desde cedo comecei a perceber.
Com muita facilidade demonstrava meu caráter antissocial usando da prática constante do isolamento, fosse com a sociedade ou mesmo com a família. Ainda garotinho fui passar uns dias com meus avós maternos. Adorava, pois mergulhava na horta e nas fruteiras com o mesmo prazer que mergulhava no rio que passava nas terras de meu avô. Pode parecer incrível o prazer que eu sentia em saber que as pessoas me procuravam e eu, observando, continuava escondido sob um pé de tomateiro, lambuzando-me. Este é apenas um dos comportamentos que costumava adotar, levando preocupações às pessoas que cuidavam de mim, pois para chegar ao rio, por exemplo, passava por três poços sem proteção lateral alguma, o que podia causar um desastre a qualquer momento de desatenção do pirralho rabugento e arisco.
Voltei para o contato direto com meus pais quando eles resolveram me colocar na escola. Era o primeiro da família a ter esse privilégio, mas não me deixou muito feliz, no primeiro momento. De imediato “as leis” educacionais daqueles anos 50 não me favoreceram por conta do meu mês de nascimento, março. Entrava-se na escola após os sete anos. O ano letivo começava em meados de outubro, de onde se pode concluir que entrei com sete anos e meio, após discussão com o diretor da escola, que viria a ser meu professor por quatro anos consecutivos.
Por esse tempo só frequentava a escola quem era filho de pais abastados e os meus eram operários fabris e analfabetos, fatores que me colocaram numa posição não muito confortável nas relações com os demais garotos. Isso contribuiu para que eu adotasse duas posturas diferentes, a primeira veio reforçar a minha tendência ao isolamento, a segunda, mais eficaz, a de me aplicar nos estudos para não chegar em casa com as mãos ardendo por conta da palmatória. Foi nesse momento, acredito que comecei a modelar o meu caráter mais definitivamente: resiliente acima de tudo, nem o frio que sentia na época do inverno, sob neve ou sobre gelo, com os parcos agasalhos que meus pais me oportunizavam eu perdia o interesse que fui ganhando pelo conhecimento. Nunca critiquei os meus pais e jamais os criticarei por tal.
A guerra terminara fazia pouco tempo e até o alimento era escasso por conta do regime salazarista, fascista e perseguidor dos mais arrojados para conseguir algo a mais que aquilo que os exploradores escravagistas davam como pagamento para uma jornada de trabalho que chegava a 18 horas diárias em alguns casos. Todos os dias saía de casa por volta das 17 horas, no inverno e pelas 18 no verão para ir levar a janta a um trabalhador que só voltaria ao lar por volta das 21 horas.
Entretanto, nas poucas horas de repouso do trabalho e nos finais de semana, aquele operário aprendeu uma arte que viria a se tornar seu futuro modelo de “ganha pão” a que hoje chamam de empreendedorismo: Sapateiro. Progrediu e chegou ao fim dos seus dias de vida com o apelido de Artur – o sapateiro.